Típico dia atípico
Fui pegar o ônibus no ponto. Sai atrasado de casa, nada fora do normal, desci os dois morros que separam a minha residência do ponto final do ônibus. A fila era gigantesca. Na verdade os trabalhadores deveriam ser pagos desde o momento em que saem de casa, até a hora de chegar ao serviço. Às vezes me imagino em São Paulo. Nunca tive a oportunidade de ir lá. As vezes que me foram ofertadas, o serviço me impossibilitou.
Mas voltemos ao ônibus... Subi. Eram cinco e quarenta e cinco e quando cheguei aos degraus do automóvel, já não havia como me sentar. Normalmente em uma situação como essa eu acharia mais que confortável um lugar no degrau da porta traseira, mas estava intimado a ser um passageiro normal está manhã. Mantive-me em pé, por hora.
Passando pelos pontos (um terço da viagem é gasta recolhendo passageiros ainda nos primeiros cinco quarteirões do bairro), iam subindo os vários colegas de labuta. Arnaldo e sua típica alegria matinal (cara fechada, mal diz oi ao motorista, mas é irreconhecível às sextas-feiras), Nilma e seu filho que vai para a escola, Dagoberto e sua esposa Lúcia. Mas me atento a uma passageira em especial: Alice. Linda era ela. Paulista, havia mudado com os pais quando pequena. Se conversasse com ela não notaria sequer um “r” a mais em tua fala (eles faltavam como em nossas palavras).
Bom, o ônibus tomou a avenida principal. Isso significa que, contrariando as leis da física, os corpos podem sim ocupar um mesmo lugar no espaço. Em um ônibus é incrível as coisas que você pode reparar. Tem sempre um gordinho careca sentado numa das cadeiras altas acima da roda. Os bancos que dão para a janela são ocupados por todos aqueles que dormem. Na verdade, às cinco da manhã, qualquer um dorme em qualquer lugar, principalmente numa quarta-feira. Mas o que quero dizer é que o banco da janela é o assento vip de um ônibus metropolitano.
Porém sempre há de haver alguém que insiste em ler um livro e sentar do lado da janela. Isso é quase um pecado. É óbvio que se você ler um livro sentado do lado da janela, alguém vai sentar do seu lado( essa pessoa já é privilegiada de sentar-se). É óbvio que ele vai dormir do seu lado. É óbvio que você não vai conseguir ler seu livro. Resumindo, se você sentar do lado da janela, durma.
Alguns dias novidades aparecem. Entra uma senhora mais católica que vai considerar que o mundo de hoje está perdido e os jovens são uns mal educados em geral (nada de que eu discorde, na verdade). Costuma entrar no ônibus também um senhor de mais idade com um rádio de pilha (depois de anos me sinto muito eclético, adoro boates móveis e o Good Times). Além de todos os estudantes com as suas mochilas gigantescas... o dia que um cadeirante tenta pegar o ônibus. O ambiente é muito dinâmico, apesar de você não precisar nem se segurar para se manter em pé de tanta mobilidade.
Mais próximo do centro o trânsito pára. Nem sempre precisa ser perto do centro. A verdade é que, independente de onde, o trânsito pára. E que não chova. Eu ainda tento considerar por que as “vias de trânsito rápido” existem. Nos dias de semana elas não andam mais que uma média de 15 Km/h e nos fins de semana, ao longo de toda a pista com placas de regulamentação indicando 80Km/h, os radares são sempre de 60 Km/h. Eu não citei as BRs.
Em minha cidade, mesmo. Na sua entrada temos um portal( mesmo que o nome indique algo parecido com conto de fadas, não é) que nada mais é que uma guarita da polícia rodoviária, uma massa de concreto redonda que impossibilita caminhões de grande porte de passar por baixo e um radar. Todo o resto foi feito em função do radar, diga-se de passagem. Um radar que acusa alta velocidade a incríveis 30Km/h. se carroças fossem metálicas é bem provável que o seu Nestor do depósito leva-se uma multa. Essas situações me fazem rir.
Alice estava incrivelmente linda hoje. Ficara na parte da frente do ônibus. Por sinal a parte da frente do ônibus é um caso a parte. Chega um ponto que os passageiros desistem de passar para trás. Nesse momento a roleta é um dos melhores locais para se afixar. Aí, à medida que o ônibus enche, o motorista vai perdendo os seus retrovisores. Aos poucos as cabeças dos passageiros tampam o retrovisor central e direito. Nesse momento você em seu carro indo para o serviço toma uma fechada do meu ônibus. Segundo o trocador: “tá livre, manda brasa”.
Os trocadores. Outro caso a parte. Realmente é comum ver o bom e velho bigode de trocador por aí. Alguns trocadores são mal humorados. Você diz: “Bom dia”, ele: “não tenho troco, posso te voltar em vale?”, você: “não”(como você paga o resto das despesas do dia?), ele: “senta aqui perto que depois eu te dou o troco.”. Obvio não existe lugar para sentar perto dele. Mas alguns trocadores são psicólogos, outros contadores de história...
Depois dos engarrafamentos, as buzinas, as pescadas e tudo que ocorre matinalmente, aos poucos, o ônibus vai se esvaziando. Ele volta a parecer grande, as poltronas reaparecem e você acha que está chegando. Sempre tem um que dorme demais e perde o ponto. Os estudantes são bem perseverantes nesse caso. Tem o cara que não sabe pra onde vai, onde desce e como chega onde ele não sabe que vai. O problema é quando o motorista/trocador é novato. Nessas horas esse tipo de passageiro está perdido.
E meu ponto chegou. Desci. Junto comigo, Alice. Acho que é obvio que eu não desperdiçaria uma viagem com ela caso ela não descesse em meu ponto e fossemos para o trabalho juntos. A saudade é boa, sem excesso. E pensando tanto, a viagem nem se fez tão longa. Outro dia penso dos motoristas, dos semáforos e de outras coisas que nem sempre me fazem sentido.
Realmente... acho que quase toda viagem de ônibus tem potencial para dar origem a uma boa crônica...
ResponderExcluirAh, não se preocupe, ainda que os ornitorrincos não apareçam muito, eles estão sempre por aí...
Nossa, bela descrição, lendo eu me vi no 121 as 18:00 todos os dias.
ResponderExcluirDepois da sua dica nunca mais vou ler sentada ao lado da janela.
Hum, o portal, na verdade até hoje não entendi muito bem para que ele serve, contando que todas as vezes que passei por ele, não tinha nenhum policial lá.
bjo0os. Saudades
Very good, Emílio!
ResponderExcluirE me fez lembrar os tempos de CEFET, em especial
os dias de ir às aulas do Campus II, em que eu pegava o velho 1205 vindo de Santa Luzia.
Realmente, nem era preciso se segurar todos os dias para ficar de pé...